Pills

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5 de dez. de 2015

UM METEORO CHAMADO HÜSKER DÜ



Era a opinião geral no incipiente cenário underground norte-americano, início de 1980: nunca, nenhuma banda tocou tão alto, tão rápido e com tanta energia quanto o Hüsker Dü. Eles caíram como um meteoro rimbaudiano na pacata Minneapolis e, ao longo de seis conturbados anos, vitaminaram com a sua raiva hardcore a música pop conciliadora da era Reagan. Mudaram alguns rumos do rock´n´roll. Fulminaram-se logo após assinarem com uma grande gravadora...



CENÁRIO : A RAIVA

     
     
Para uma cena underground aproveitável tomar forma e entrar para a história do comportamento e da arte, ambos muitas vezes revolucionários, é necessário um componente fundamental: a raiva. E esse ingrediente, via-se brotar logo no início da era Reagan, na década de 1980, ao longo do território norte-americano dentro de muitos, porém, pequenos e fragmentados, cenários de contestação que iam surgindo nos porões do “país das oportunidades”. Toda uma cultura underground, com seus selos de gravadoras independentes, fanzines e college radios, nascia como contraponto à megalomania das grandes gravadoras (as famigeradas Majors), da imprensa especializada e da mídia oficial.
Era necessário ser ótimo com o seu instrumento, lotar estádios e ser lucrativo para merecer a alcunha de músico de rock. Sinal da arrogância desses tempos. Como nadar contra isso ? Como vencer a constante batalha contra a obscuridade, a pobreza e a frustração por não fazer parte da grande alegria hegemônica? A resposta era: simplesmente não fazer parte ! Cultivar sua independência e raiva. Uma boa metáfora pode explicar melhor: desprezar as grandes gravadoras era então combater o otimismo moralizante, conservador e nacionalista da era Reagan às voltas com a Guerra Fria.
Aos poucos, os que se aventuraram como inovadores independentes perceberam ali a possibilidade de uma via alternativa cujos objetivos eram opostos aos da grande mídia. A liberdade de criação era mais importante do que uma “criação direcionada” à pasteurização mercadológica. Era necessário tomar o controle da sua própria criação, produção, imagem, distribuição e agenda. Formar um público por menor que fosse a partir das ideias singulares e da sonoridade agressiva da sua banda. Não se tratava de um entretenimento e sim da sua vida. Um avanço cultural e não um simples consumo inofensivo visando tão somente o "business".
E foi dentro desse cenário e alimentando-se cada vez mais dessa raiva peculiar que a banda Hüsker Dü se formou e pavimentou as estradas tortuosas que conduziriam rapazes como eles (Bob Mould, Greg Norton e Grant Hart) a povoarem a cena independente com suas próprias ideias e, ocasionalmente, como o R.E.M ou o Nirvana, por exemplo, levá-las ao mainstream e mudar a história do rock.


TOMAR O CONTROLE: SER DIFERENTE


A ideia era simples: “temos algo a dizer sobre toda essa merda civilizatória que todos chamam "american way of life" Iremos dizer de alguma forma. Temos que tomar o nosso próprio controle, fortalecer-nos e simplesmente nos impor a quem quer que seja. Melhor ainda se houver alguém que nos ouça...” Pronto, era o “Faça você mesmo” (DIY, do it yourself), a conduta de base da independência hardcore. Era muito mais do que ter uma banda, era “tomar o controle”. O Hüsker Dü nunca esqueceu essa essência, porém, o que fez deles um divisor de águas entre a doutrina punk dos três acordes e o novo underground que mudaria os rumos do rock and roll foi curiosamente uma obsessão pelo formato Pop Rock dos anos 60 – a isso acrescentando um certo intimismo nas letras e um ataque sonoro sem precedentes. Uma psicodelia intimista e furiosa: talvez possa ser um esboço do que pretendia o Hüsker Dü.
Dessa forma, embora difícil, para o Hüsker Dü era necessário abandonar musicalmente o punk e sua doutrina dos três acordes assim como todo o seu ethos de comportamento e “compromissos anárquicos”, se a banda quisesse expandir seus conceitos musicais. Tomar o controle de verdade era também deixar o berço opressivo do lar, no caso, o rótulo de banda hardcore; para Bob Mould era uma questão de honestidade: “Não há nada de errado com as bandas punks idealistas, mas nunca iríamos jogar bombas ou pichar espaços públicos, então, porque deveríamos falar sobre essas coisas ? Não é certo mentir para esses rapazes, não deveríamos enganá-los”.
Porém, o extraordinário no Hüsker Dü tornou-se sua marca: quanto mais se afastavam do formato e do discurso punk mais enérgica e raivosa se tornava a música da banda bem como as suas letras cada vez mais densas e pessoais (nesse aspecto, talvez uma linha direta vinda dos Buzzcocks). Também a melodia era cada vez mais trabalhada e isso era a herança do psicodelia pop dos anos 60 da qual tanto Bob Mould quanto Grant Hart carregavam influências.
O resultado eram shows cada vez mais poderosos. Estratégico era o efeito gerado pela energia, pelas melodias e fluxo frenético das canções, propositalmente sem intervalos gerando uma “desorientação” na audiência, um certo êxtase quando então não lhes restava tempo para comentar o que tinham acabado de ouvir ou distrair-se entre as músicas. Assim como seus contemporâneos, o Hüsker Dü tinha nos shows as ideias para os álbuns e vinha dali, daquele público que cultivava o cenário independente, a chama para continuar o seu trabalho nos estúdios de gravação.


QUADROPHENIA PUNK: “ZEN ARCADE”, O AUGE CRIATIVO


Interessante notar que a grande maioria das músicas gravadas pelo Hüsker Dü, em sua fase independente pelo menos, surgiram em um "take" apenas, sem serem refeitas ou buriladas. Isso se devia a pura necessidade de economia de tempo no estúdio, e tempo era o dinheiro já escassíssimo das turnês para as quais iam quase sempre com um veículo próprio e contando apenas com o próprio esforço na estadia e divulgação. Assim, a rapidez na sequência das músicas nos shows refletia na pressa de gravação nos estúdios e no lançamento dos álbuns: vida frenética, estética frenética.
“Zen Arcade”, obra-prima do Hüsker Dü, foi o segundo LP da banda, precedido por “Everything Falls Apart” e o EP “Metal Circus” ambos ainda fundamentalmente obedecendo ao esquematismo hardcore. “Zen Arcade” foi lançado em 1984 e cumpriu à risca as expectativas de Bob Mould que dissera antes da concepção do álbum que a banda faria o disco fundamental da época; deixando o berço hardcore para ampliar suas ideias rumo a uma nova liberdade mais afeita a "pop music".
Porém, onde se chegou com “Zen Arcade” foi ainda maior: para alguns o alargamento das fronteiras do hardcore; para outros o álbum habitava uma terra ainda inexplorada entre a crueza noise do punk e o mais melódico e puro pop. O fato é que “Zen Arcade” fez do Hüsker Dü a banda local de Minneapolis mais conhecida nacionalmente, alargando seu território de influências sobretudo pela necessidade de compreensão que o álbum suscitou no público: desde o mais especializado jornalista até aos simpatizantes e curiosos do que ocorria nos subterrâneos do rock.
Sem dúvida, essa necessidade de compreensão era gerada pelo carácter conceitual do álbum: “Zen Arcade” conta a história de amadurecimento de um personagem que deixa o lar conflituoso em busca de viver com liberdade (e independência) os percalços da vida. Assim como Jimmy, da ópera rock “Quadrophenia” sexto álbum do The Who, o personagem anônimo em “Zen Arcade” declara seus medos, frustrações e indecisões através das músicas que vão alternando momentos do mais enfurecido hardcore a paisagens sonoras psicodélicas e líricas (até com a adição de instrumentos acústicos e piano). “As pessoas começavam a se interessar pelas letras e sobretudo pelas entrelinhas e alguns sacavam que aquilo ia além do amadurecimento de um personagem: era sobre o amadurecimento de todo um cenário musical”, diria tempos depois Bob Mould. E essa era a outra chave de interpretação: o amadurecimento e jornada da própria banda Hüsker Dü.




A GRANDE GRAVADORA E O GRANDE OCASO


Seguiu-se para além de “Zen Arcade” a caminhada reveladora do Hüsker Dü através dos ótimos trabalhos: “New Day Rising” e “Flip Your Wigs”, ambos lançados em 1985 ainda pela pequena gravadora SST. Neles a liberdade criativa tão ambicionada foi desenvolvida plenamente e a banda alcançou seu estilo próprio que ia desde a agressividade noise da guitarra de Bob Mould aos vocais e backing vocals divididos e trabalhados por Mould e Hart, ambos os compositores da banda.
Desde a repercussão de “Zen Arcade” a gravadora Warner vinha tentando contratar a banda e isso aconteceu apenas quando os termos do contrato puderam envolver o completo controle criativo pela banda ao longo dos próximos álbuns. E isso ainda era inédito em uma relação entre uma major e uma banda independente - partiram desse modelo outras contratações que fizeram bandas obscuras figurarem nas grandes gravadores ao longo dos anos 80 e 90.
O Hüsker Dü ainda lançaria mais dois álbuns pela Warner, “Candy Apple Grey” (1986) e o duplo “Warehouse: Songs and History” (1987). Uma avalanche de problemas ocorreu entre os integrantes da banda e assessoramento nesses dois anos de Warner: o recrudescimento de uma rivalidade entre Bob Mould e Grant Hart derivada da omissão dos direitos de composição de Hart por parte de Mould em alguns discos, o suicídio do empresário da banda, David Savoy, o pesado vício em heroína de Grant Hart. Tudo isso refletiu claramente na banda e suas turnês até então bem organizadas e metodicamente arquitetadas passaram a contar com o acaso para realizarem-se. Tudo ruiu em 1987 com a saída de Grant Hart da banda.


LEGADO ?



O estilo do rock “das grandes corporações” era sobre viver largamente, dentro de um mundo irreal de excessos; o rock independente era a vida real do trabalho árduo e a confiança nele. Bandas independentes não precisavam de agendas promocionais e entrevistas enfadonhas, orçamentos estratosféricos, equipes altamente treinadas, um guarda-roupas criado por estilistas e designers. Precisavam apenas acreditar em si e nas suas ideias e levar alguns poucos a acreditarem também. Tomar o controle. E o Hüsker Dü nunca abandonou essa essência, mesmo quando contratado pela Warner. Valorizou até o final seu poder criativo e inspirou bandas com boas propostas a lutarem por elas mesmo dentro de um esquema mercadológico por vezes predatório.


Mais do que citar bandas influenciadas pelo Hüsker Dü, e declaradamente são inúmeras, podemos dizer que a principal influência foi estrutural: foi desvendar o caminho para o trânsito entre dois mundos até então dissociados, o mundo underground e sua auto-suficiência (ás vezes aprisionante também) e o mundo das grandes corporações de entretenimento, não obstante sua voracidade pelo lucro, também ávido por novidades brilhantes em seu catálogo como foi a banda Hüsker Dü.


DISCOGRAFIA E DADOS TÉCNICOS

    Bob Mould    (vocais, guitarra e composição)
     Grant Hart     (bateria, vocais e composição)
     Greg Norton  (baixo)

     Minneapolis, EUA

     ÁLBUNS DE ESTÚDIO:

     Everything Falls Apart (1983)
     Zen Arcade  (1984)
     New Day Rising (1985)
     Flip Your Wigs (1985)
     Candy Apple Grey (1986)
    Warehouse: Songs and Stories (1987)



     Referências:
     "Our band could be your life : Scenes from the American Indie Underground - 1981-1991" Azerrad, Michael
         Hüsker Dü Database - Magazine's articles & interviews: http://www.thirdav.com/zinestuff/zinelist.html




               
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